Na tentativa de reaquecer a economia do país, Lei 13.874/19, sancionada em 20 de setembro, traz algumas mudanças visando a desburocratização dos negócios no Brasil. Entenda as principais modificações e aspectos controversos da nova lei.
Recém-aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei de Liberdade Econômica nasceu a partir de estudos realizados no âmbito do Grupo Público da FGV Direito-SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Segundo o texto do projeto, a lei tem o objetivo de traçar melhorias para o ambiente de negócios no Brasil, rebalanceando o peso da regulação pública “muitas vezes de eficácia duvidosa” sobre a atividade econômica do país.
Ao longo de todo o texto aprovado, a tônica da nova Lei funda-se, assim, na ideia de desburocratização. Como destaca o próprio projeto, em linguagem jurídica mais tradicional, a lei traz modificações sobre “o campo do poder de polícia do Estado sobre a liberdade econômica e sobre a propriedade, o qual tem base em leis específicas e se desdobra em inúmeros atos e processos administrativos. Exemplos são as exigências de licenças e autorizações prévias para ações da vida privada por razões de organização econômica setorial ou mesmo urbanísticas, de segurança, de ordenação dos transportes, sanitárias, ambientais, etc, bem como o consequente exercício do poder de fiscalizar e de aplicar sanções administrativas”.
Com efeito, a ideia central do projeto é a de reordenar essas relações, instituindo “um marco jurídico capaz de propiciar clareza e segurança quanto a suas técnicas e limites”, promovendo a coordenação dos entes federativos e órgãos judiciais, retomando a competência do Poder Legislativo de editar “normas gerais que disciplinem e limitem” as interferências e a falta de clareza e segurança jurídica pela falta de um referencial nacional. Sendo assim, a lei propõe-se a preencher esta lacuna, por meio de um “estatuto nacional da livre iniciativa” – e por isso, a sua denominação como Lei Nacional da Liberdade Econômica.
Recepção da sociedade
A pesquisa tem sido recebida com bons olhos pelo mercado, ainda que, pelo texto oficial publicado, as mudanças possam parecer tímidas e contenham alguns pontos polêmicos. Segundo pesquisa publicada pela Folha de São Paulo em 14 de outubro de 2019, 59% dos pequenos empreendedores apresentam-se otimistas em relação ao nível de confiança em medidas públicas para aumentar as vendas do varejo. A pesquisa demonstra ainda que entre as 7 medidas econômicas mais desejadas pelos empresários, dois itens estão contidos na nova lei: a flexibilização de leis trabalhistas no país e a facilitação do processo de abertura das empresas.
Pelas contas do Governo Federal, a nova regra deve trazer mais empregos ao país. O Ministério da Economia prevê a criação de 3,7 milhões de vagas em dez anos, motivada pela redução de custos dos negócios. Nesse sentido, Daniel Sakamoto, gerente de projetos da CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas) declarou à Folha que a regra traz otimismo para os empresários e que naturalmente isso se refletiria na geração de postos de emprego.
No entanto, na opinião do advogado trabalhista Otávio Pinto e Silva, também entrevistado pelo Jornal, a nova lei sucinta alguns pontos polêmicos e as estimativas são muito exageradas, ao passo que “as mudanças que a lei traz são tímidas para gerar um grande incremento na atividade econômica”.
Desconsideração da personalidade jurídica
Um dos pontos mais polêmicos da nova lei consiste nas alterações no mecanismo de desconsideração da personalidade jurídica estabelecido no Código Civil de 2002. O dispositivo responsabiliza sócios e proprietários de um negócio pelas dívidas da empresa. A nova lei alterou essa regra ao estabelecer que essa responsabilização só poderá ser feita em caso de “desvio de finalidade abusiva” e “confusão patrimonial” (quando não há distinção entre o bem da empresa e do sócio).
Na prática, isso significa que o patrimônio pessoal dos sócios só poderá ser alcançado quando houver comprovação de fraude. Com isso, a lei exclui a possibilidade de interpretação judicial no sentido de uso do patrimônio pessoal para pagar alguma dívida da empresa. Além disso, a nova lei estabelece que caso comprovada a fraude, “imputar-se-á a obrigação exclusivamente ao sócio, associado, instituidor ou administrador que tiver realizado a fraude, ou dela tenha se beneficiado”.
A medida foi comemorada pela AbStartups (Associação Brasileira de Startups). Tânia Gomes, vice-presidente da entidade declarou à Folha que ter o patrimônio pessoal preservado caso algo dê errado é um estímulo para que essas startups continuem surgindo”. No entanto, os advogados acreditam pouco na eficácia dessa separação. Silva alerta que segundo a legislação trabalhista, em caso de dívidas com funcionários, ainda é legítimo ir atrás dos bens dos sócios quando a empresa não tiver mais recursos. A nova lei deve assim, causar deve causa divergência na jurisprudência pois alguns juízes não vão levar a nova norma em consideração, enquanto outros poderão adotá-la.
Dispensa de licença para negócios de baixo risco
A nova lei institui também a possibilidade de dispensa de licença e autorização para negócios de baixo risco poderem funcionar no país. Sobre o que caracterizaria uma atividade como de baixo risco, ainda não há uma norma federal sobre o tema e cada município e Estado pdoerá definir quais são os tipos de negócios que se encaixariam nessa definição.
Há, no entanto, uma resolução (sem força de lei) que orienta a interpretação do termo. Estabelece-se, por esse texto, que por “baixo risco”, deve-se compreender os negócios realizados na casa do empregador, que ou são de natureza digital ou operam em um espaço de até 200m², em prédio de até 3 pavimentos, com no máximo 100 pessoas. Em São Paulo, segundo dados da Prefeitura, 80% das empresas estão na categoria.
Além disso, a nova lei disciplina a rapidez e eficácia do Poder Público nas situações em que a emissão de um alvará se faz necessária. Isso porque, havendo necessidade do alvará, o órgão público responsável pela emissão deve estipular um prazo para fazê-la. Se a data for ultrapassada, o pedido é automaticamente aprovado.
Essa é uma das medidas, portanto, que está em harmonia com aquelas desejadas pelos empresários segundo a pesquisa que já mencionamos. Isso porque facilita muito a abertura de pequenos negócios, que como destaca Gomes (AbStartups) inicialmente dependem, na maior parte das vezes, exclusivamente do seu dono.
Registro de ponto e CTPS eletrônica
Outras medidas que, de acordo com a pesquisa, agrada aos empresários são aquelas que flexibilizam e desburocratizam algumas normas trabalhistas. É o caso da instituição da Carteira de Trabalho e Previdência Social, que agora assume o formato “preferencialmente eletrônico”. Pela nova regra, a impressão em papel deve ser a exceção e o documento terá como identificação única do empregado o seu Cadastro de Pessoa Física (CPF).
O procedimento para registro também foi simplificado. Os empregadores terão cinco dias úteis para, a partir da admissão do trabalhador, realizar as anotações e, feito isso, o trabalhador deverá ter acesso às informações em até 48 horas.
Nesse sentido, as normas de de controle de horários também foram flexibilizadas. A exigência dos registros de ponto agora é obrigatória somente em empresas com mais de 20 funcionários (não mais 10, como na norma anterior). Além disso, prevê-se que o registro deve ser feito também quando o trabalho for realizado fora do estabelecimento e que mediante acordo individual escrito, acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho fica permitido o uso de ponto por exceção à jornada regular.
Essa última alteração vem no sentido diametralmente oposto à jurisprudência vigente e também tem sido alvo de questionamentos entre os juristas. Isso porque o chamado “ponto por exceção” constitui-se na na inexistência de marcações diárias dos horários efetivamente realizados de entrada e saída, de forma que se realizam as anotações apenas excepcionalmente, quando há prorrogação de jornada.
A jurisprudência trabalhista era pacífica em relação à inviabilidade desse tipo de controle, ainda que previsto em negociação coletiva. Ao autorizar a marcação por exceção, critica-se que a medida abriria margem para fraudes e insegurança jurídica, ao passo que, vai de encontro com a própria finalidade das marcações de ponto, que visam dar segurança ao trabalhador quanto à correta apuração do trabalho realizado – e consequentemente da exatidão do seu devido pagamento.
A figura do “abuso de poder regulatório”
Outro ponto de controvérsia na Lei de Liberdade Econômica é a criação da figura de “abuso regulatório”. O conceito estabelece infrações cometidas pela administração pública para quando, ao editar norma regulatória, esta “afete ou possa afetar a exploração da atividade econômica”. Isto significa que, à título de “garantias da livre iniciativa” o texto impõe no corpo da lei a invalidação de determinados atos administrativos no exercício de regulamentação de norma pública.
As limitações encontram-se elencadas no artigo 4º da nova lei e alguns exemplos relevantes são: criar reservas de mercado para favorecer um grupo econômico em prejuízo de concorrentes (I); redigir normas que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado (II); exigir especificação técnica desnecessária para o objetivo da atividade econômica (III); criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros (VI).
Para evitar generalizações e aferir o efetivo impacto regulatório de uma norma, a lei determina que para qualificar a tomada de decisões de caráter regulatório deve-se realizar uma Análise de Impacto Regulatório (AIR), tal como discriminada no artigo 5º da nova lei. O artigo prevê que “as propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico”
A controvérsia reside no fato de que a pretexto da livre iniciativa e liberdade econômica, outros direitos e interesses possam ser afetados. É preciso evitar as generalizações que o conceito permite e a regulamentação do chamado AIR deve ser compreendida de forma sistemática, analisando não só o seu impacto econômico mas também a relação com os demais interesses e direitos da sociedade.
Nesse sentido é a análise dos advogados Fabio di Lallo e Daniel Vila-Nova[1]: “Para se garantir a robustez e transparência do processo regulatório, a AIR deve ser objeto de escrutínio por parte da sociedade e do mercado para que a autoridade responsável pela produção do ato normativo possa ter todos os elementos possíveis para tomada da decisão mais adequada aos fins pretendidos. Do ponto de vista metodológico, embora o foco AIR da Lei da Liberdade Econômica seja verificar a razoabilidade do impacto econômico, é importante que nesse processo também outros direitos e interesses possam ser preservados, tais como o meio-ambiente, o patrimônio cultural, etc.O método de análise, por conseguinte, tende a variar de acordo com o tipo de problema que se pretende resolver. Daí a importância de diversificar nas análises o uso de diferentes abordagens quantitativas e qualitativas dentre as análises mais comumente usadas (monetização de custos, de custos e benefícios, multicritério)”.