Recém-aprovada pela Câmara dos Deputados, a Lei n 13.869/19 deve entrar em vigor no ano que vem e divide opiniões entre magistrados, procuradores e advogados quanto aos seus possíveis impactos no Poder Judiciário.

 

Após dois anos de debates no Congresso Nacional, foi promulgada no início de setembro a Lei 13.869/19, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade no Brasil. Após receber diversas críticas de associações de juízes e membros do Ministério Público, o texto foi encaminhado à Presidência da República, a qual decidiu por vetar 36 dispositivos, sendo 23 deles relativos à definição de condutas que caracterizariam crime de abuso de autoridade.

A análise dos vetos ocorreu na terça-feira, dia 24/09, pelo Plenário do Congresso Nacional e 15 dos tipos penais então vetadas acabaram sendo restaurados ao texto legal. No entanto, a derrubada dos vetos gerou muita controvérsia, dividindo os parlamentares, sobretudo no Senado.

O que dizem os contrários á nova Lei

Um grupo de 34 senadores, que havia publicado um manifesto defendendo o veto integral da nova lei, se mobilizou para preservar as intervenções presidenciais. Como são necessários pelo menos 41 votos para a derrubada do veto, o racha no Senado em relação ao tema ficou ainda mais evidente.

Segundo o manifesto dos senadores, a Lei não ofereceria ao país uma legislação moderna, competente, que responsabiliza autores de eventuais abusos de autoridade. O senador Álvaro Dias (PODEMOS-PR), um dos líderes do movimento, chegou a afirmar que “o objetivo é a intimidação, é atemorizar, especialmente no âmbito da Operação Lava-Jato, que vem desbaratando uma organização criminosa no país” (Fonte: Agência Senado). Outro senador (Lasier Martins, PODEMOS-RS) declarou que o projeto é deslocado no tempo e nas circunstâncias e que consubstanciaria um “instrumento para autoproteção de investigados por corrupção” (Fonte: Agência Senado).

Nesse sentido, a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público – FRENTAS, entidade constituída por diversas associações – com aproximadamente 40 mil juízes e membros do Ministério Público congregados – divulgou uma nota pública em protesto afirmando que “o texto chancelado pelos parlamentares será responsável por inibir a atuação da magistratura, do Ministério Público e das forças de segurança, prejudicando o desenvolvimento de investigações e processos em todo o país, contribuindo, assim, para o avanço da impunidade e para o cometimento de ilegalidades”. Em tom dramático, afirma-se ainda na nota que a legislação aprovada “impõe o medo e o receio na atuação de juízes, promotores e procuradores”.

O que dizem os favoráveis à nova Lei

Por outro lado, a aprovação do texto e a derrubada de parte significativa dos vetos foi celebrada por parlamentares da oposição e diversas outras agremiações sociais, dentre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Na opinião do jurista Carlos Ari Sundfeld, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), a nova legislação é coerente com a evolução institucional do país. O jurista alertou que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, as instituições do país têm se mostrado cada vez mais poderosas, o que conduz, por conseguinte, a um risco maior de desmandos.

Sundfeld considera “exagerada” a preocupação com a nova lei. Segundo o jurista ela representaria uma etapa de amadurecimento institucional no processo de redemocratização. A previsão de novos mecanismos de controle sobre o Judiciário viria em complemento à vigilância social cada vez maior do Legislativo – pressionado pelo risco de cassação de mandatos – e a uma preocupação natural que já paira sobre o Poder Executivo pela sua própria natureza de autoridade:

“No passado, a preocupação com abusos estava muito ligada ao Executivo, sempre considerado a fonte de todo o poder de fato. Com a redemocratização, o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público adquiriram outro status, com estruturas maiores, mais gente, mais dinheiro. As possibilidades de abuso aumentaram. É natural que as pessoas debatam sobre formas de controlar melhor esses poderes” (Fonte: Agência Senado)

No mesmo sentido, os senadores que votaram a favor da medida também se manifestaram publicamente, afirmando que as limitações instituídas pela lei são democráticas pois protegem o cidadão comum de arbítrios estatais. Tal como declarou o senador Humberto Costa (PT-PE), a nova lei “é importante para a preservação da democracia e do respeito às garantias individuais. Quem mais tem os seus direitos desrespeitados, quem mais sofre abusos de autoridade, é a população mais pobre. Essa é uma lei para defender, fundamentalmente, o cidadão comum” (Fonte: Agência Senado).

O que prevê a Lei nº 13.869/19

A nova norma, de autoria do ex-senador Roberto Requião (PR), atualiza uma antiga lei (nº 4.898/65), que já tipificava condutas como crimes de abuso de autoridade. As polêmicas em torno da nova lei se concentram no fato de que a nova norma não só amplia o rol de condutas descritas como abusivas – no total, somam 45 após a análise dos vetos – mas também inova ao prever expressamente que os seus dispositivos se aplicam a todos os agentes públicos, autoridades militares e civis, de qualquer dos Poderes da República (Art. 2º), incluindo expressamente a possiblidade de penalização de membros do Poder Judiciário (inciso IV) e do Ministério Público (inciso V) – a Lei de 1965 restringia-se apenas a servidores do Poder Executivo.

 

Em relação às condutas em si, a nova lei chega a estabelecer punições de até quatro anos de detenção. Em casos de reincidência, o servidor pode também perder o seu cargo e ficar inabilitado para retornar ao serviço público por até cinco anos (Art. 4º, parágrafo único). A título de exemplo, algumas hipóteses tipificadas são: decretar prisão fora das hipóteses legais (art. 9º), forjar flagrante (art. 23), usar prova mesmo tendo conhecimento de sua ilicitude (art. 25), entre outros.

 

Além dos crimes previstos no bojo da própria lei, foram acrescentadas ainda condutas abusivas a outras legislações. É o caso por exemplo, da Lei 9.296/96 – que regulamenta o sigilo telefônico – e que agora passa a ter previsão expressa do crime de instalação de escutas sem autorização judicial. No mesmo sentido, a lei modificou o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), estipulando, em novo artigo, pena para violação de algumas prerrogativas dos advogados, tais como a inviolabilidade do local de trabalho e de comunicações relativas à profissão.

 

Controvérsia vai ao Supremo Tribunal Federal

Dias após a derrubada dos vetos, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal, pedindo que o Tribunal declare inconstitucional diversos artigos do texto final da lei. Na inicial, a AMB argumenta que a lei atenta contra a própria natureza da atividade jurisdicional, viola o princípio da independência judicial “em razão do receio que terá o magistrado de proferir decisões em situações que outros poderão compreender como típicas de algum crime de abuso de autoridade”.

 

Alega-se que a lei ratificaria aquilo que tem se chamado de “crime de hermenêutica”, em que a mera divergência na interpretação de lei poderia caracterizar abuso de autoridade. Em que pese a lei afastar expressamente (art. 1º, §2º) essa possibilidade a partir de excludente legal de ilicitude – como reconhece a própria Associação na inicial -, alega-se que ao final, “sempre que um magistrado profere uma decisão, desagrada pelo menos uma das partes envolvidas no processo e, usualmente passa a sofrer toda espécie de ataque”.

 

Por este motivo, aduz-se que o grau de litigiosidade no Judiciário deve aumentar consideravelmente e que “a possibilidade de que por meio de provas indiciárias – válidas no processo penal – vir um magistrado a ter sua conduta qualificada como criminosa sob a pecha de que teria agido ‘com a finalidade específica de prejudicar outrem’, ou ‘de beneficiar a si mesmo ou terceiro’, ou ainda ‘por capricho ou satisfação pessoal’ torna o exercício da jurisdição uma atividade de risco inaceitável em um Estado Democrático de Direito”. Critica-se, então, que alguns crimes previstos na lei constituem normas penais de caráter aberto e de lesividade mínima, que ferem a imunidade funcional dos magistrados e poderiam ser corrigidos por sanções administrativas disciplinares.

Em resposta, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou com pedido de atuação como amicus curiae na ação da AMB, em defesa da constitucionalidade da lei. A OAB deseja a manutenção integral dos dispositivos que criminalizam a violação das prerrogativas dos advogados, destacando que durante a 66ª fase da Operação Lava-Jato – representação máxima de toda a controvérsia – deflagraram-se vários momentos em que os advogados sofreram com condutas abusivas, tais como nos casos de invasões de escritórios, apreensão de computadores e documentos, grampos telefônicos, entre outros.

 

Nesse sentido, em seu pedido, o Conselho Federal da OAB argumenta que “proteger a advocacia contra a prática de abusos não representa uma imunidade absoluta e tampouco um privilégio descabido. Constitui simplesmente o respeito estrito às garantias legais e constitucionais”. No mais, alega-se que a lei tem a finalidade de “coibir as práticas de abusos por parte de autoridades públicas que, independentemente do segmento que ocupam e da função que desempenham, devem se sujeitar ao império da lei” e que as prerrogativas da advocacia “representam uma conquista histórica, não apenas da classe representada por esta Entidade, mas da cidadania como um todo, ao conferir especial proteção ao exercício do direito de defesa”.

 

Em relação ao chamado “crime de hermenêutica” e eventual risco à independência da atividade jurisdicional, ressalta-se ainda que a própria estruturação da lei demonstra uma preocupação com que sua aplicação não se dê de forma enviesada ou descontrolada, pela previsão expressa de que a mera divergência na interpretação da norma não configura abuso de autoridade. Segundo a Entidade, “é clara a intenção do legislador em conferir à Lei de Crimes de Abuso de Autoridade alcance limitado apenas àquelas infrações de maior potencial ofensivo, cuja lesividade destoa da esfera sancionatória própria do direito administrativo”. Importa-se, portanto, com atos cuja intenção é “de prejudicar ou beneficiar de maneira indevida, por meio do uso desviante de podres ligados à função pública”.

 

O Supremo Tribunal ainda não definiu data para o julgamento.

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